artigos e notícias

Cinemateca: um imbróglio bem embrulhado

Share on facebook
Share on linkedin
Share on email
Share on telegram
Share on whatsapp

Por Carlos Augusto Calil, presidente do Conselho Delibertivo da SAC. Texto publicado no jornal Folha de S. Paulo, em 07.08.2021.

Um galpão da Cinemateca Brasileira, no bairro da Vila Leopoldina, em São Paulo, foi consumido pelo fogo em 29 de julho último. Foi o quinto incêndio nessa instituição ao longo de sua história: 1957, 1969, 1982, 2016 e 2021.

Em 1957, o impacto foi enorme. O fogo destruiu o 13º andar do edifício da rua Sete de Abril, 230, sede do Museu de Arte Moderna. As instalações da Cinemateca comportavam biblioteca, documentação, filmes brasileiros e clássicos do repertório estrangeiro, aparelhos antigos do Museu do Cinema. Um terço dos filmes se perdeu definitivamente. A violência do fogo que assustou bombeiros foi causada pela autocombustão dos filmes em suporte de nitrato de celulose, temidos pela sua inextinguibilidade.

Ciccilo Matarazzo, o patrono das artes plásticas, tinha abrigado a Cinemateca no mesmo edifício em que mantinha a coleção que compunha o núcleo inicial do Museu de Arte Moderna. O incêndio só não atingiu o acervo porque irrompeu no último andar do prédio. A convivência física com a Cinemateca tornou-se altamente arriscada.

Ciccilo, que havia coordenado os trabalhos de implantação do Parque Ibirapuera, construíra um galpão no portão 9 (Avenida Quarto Centenário) para as reuniões da sua equipe. Inaugurado o Parque em 1954, ele deveria ter sido demolido. Com as bênçãos do poderoso padrinho, a Cinemateca instalou-se nesse endereço bucólico em meio a um bosque de eucaliptos sob os quais espalharam-se os depósitos de filmes inflamáveis.

Separada do MAM, a Cinemateca se institucionalizou como fundação privada, cujo conselho curador era composto por um grupo eclético politicamente, mas de grande envergadura cultural. Dele participavam, entre outros, Cláudio Abramo, Décio de Almeida Prado, Francisco Matarazzo Sobrinho (Ciccilo), Júlio de Mesquita Filho, Humberto Mauro, Mário Pedrosa, Rodrigo Melo Franco de Andrade, Sérgio Buarque de Holanda, Vinicius de Moraes. Na diretoria estavam Paulo Emílio Sales Gomes, Antonio Candido e Almeida Sales.

Paulo Emílio passa então a procurar apoio no poder público. No plano municipal, encontra amparo para a Cinemateca na política criada para compensar a falência da Vera Cruz. O imposto municipal recolhido nas bilheterias de cinema da capital era revertido ao fomento dos filmes brasileiros e às atividades culturais; no plano estadual, apesar das demonstrações de apreço pela causa, nada foi conseguido; com a USP firmou-se um convênio pelo qual a Cinemateca ganharia um endereço na Cidade Universitária, que incluiria bunkers isolados para o depósito seguro dos filmes inflamáveis. Eles nunca foram construídos. No plano federal, as promessas do governo Juscelino não se confirmaram e a saída foi buscar o apoio legislativo.

Naquela época, período anterior ao golpe militar, o Congresso podia tomar a iniciativa de criar despesas. Um projeto de lei que estabelecia uma subvenção federal à Cinemateca chegou a entrar na pauta de votação da Câmara, mas uma manobra da mesa retirou-a da ordem, inviabilizando o esforço político de quatro anos.

Sem apoio do poder público, a equipe da Cinemateca, composta por Paulo Emílio e seus assistentes – Jean-Claude Bernardet, Caio Scheiby, Gustavo Dahl, Maurice Capovilla, Lucila Ribeiro -, sobrevivia de artigos, cursos, palestras, mostras, sem perspectiva de futuro. O grupo acaba se dispersando; Paulo Emílio e Jean-Claude seguem a Brasília a convite de Darcy Ribeiro para criar o Curso de Cinema da UnB.

Em 1962, Dante Ancona Lopez, em parceria com o maior exibidor local, a Companhia Serrador, fundava a SAC – Sociedade Amigos da Cinemateca e passava a programar o Cine Coral com filmes de Fellini, Antonioni e os cineastas modernos da França ou do Japão, com pré-estreias de “O ano passado em Marienbad” (Resnais) e de “Harakiri” (Kobayashi), antes de ser exibido no Festival de Veneza. Criava-se assim o conceito de cinema de arte na cidade. Em seguida, a experiência se estendeu aos cinemas Scala, Picolino e Belas Artes, onde era possível ver filmes de Arthur Penn, Sidney Lumet, Bernardo Bertolucci, Miklós Jancsó. Dessa iniciativa ainda restam remanescentes: Espaço Itaú Augusta, CineSala, Reserva Cultural e o próprio Belas Artes. O trabalho de difusão cultural ganhava projeção inédita. A SAC ocupava o espaço da formação cultural do público, incentivando a cinefilia. Seu lema era “Espetáculo, Polêmica, Cultura”.

Em 1969, a Cinemateca sofreu o seu segundo incêndio num dos precários depósitos de filmes inflamáveis do Ibirapuera. A altura das chamas podia ser observada nas marcas carbonizadas dos troncos dos imensos eucaliptos do entorno. Nessa ocasião, Paulo Emílio escreveu um texto para uma revista italiana em que elaborava o luto do segundo golpe.

O Brasil se interessa pouco pelo próprio passado. Essa atitude saudável exprime  vontade de escapar a uma maldição de atraso e miséria. O descaso pelo que existiu explica não só o abandono em que se encontram os arquivos nacionais, mas até a impossibilidade de se criar uma cinemateca.

Em seguida, a Cinemateca submergiu e só foi ressurgir em 1975 quando Paulo Emílio decidiu retomá-la aproveitando os bons ventos que haviam feito de José Mindlin e Sábato Magaldi secretários de Cultura do estado e da cidade. Ambos apoiaram decisivamente esse movimento e o fundador da Cinemateca nos últimos anos de vida liderou a inflexão da instituição para o campo prioritário da preservação audiovisual.

Com recursos de projetos das secretarias de cultura, pôde a Cinemateca instalar um Laboratório de Restauro de Filmes, incontornável após os laboratórios comerciais abandonarem o tratamento do filme em branco e preto. Ao iniciar essa nova fase, a Cinemateca passou a atender demandas de todo o país, da Cinemateca do MAM do Rio de Janeiro, do Centro de Pesquisadores do Cinema Brasileiro, da UFMG, da Prefeitura de Juiz de Fora etc.

Paulo Emílio morreu em 1977. Não viu a sua Cinemateca reconhecida como esperava. A partir de 1979, a Embrafilme passou a contratar projetos de restauro de filmes, a exemplo de toda a obra de Glauber Rocha reunida pela empresa ao redor do mundo logo após a morte do cineasta, e a patrocinar projetos de envergadura como a Filmografia Brasileira. O problema principal, no entanto, continuava irresolvido.

Não havia garantia dos salários dos técnicos que de tempos em tempos eram obrigados a procurar emprego, depois de se especializar na Cinemateca. Em 1982, o terceiro incêndio irrompe na mesma instalação precária do Ibirapuera. Novamente perdemse registros únicos da nossa história e o fantasma da extinção pelo fogo volta a assombrar. Nesse momento ficou claro para os dirigentes da Secretaria da Cultura do MEC e da Embrafilme que uma solução precisava ser rapidamente encontrada em vista da extrema fragilidade institucional da Cinemateca.

Em 1984, surgiu uma oportunidade única: diante da crise aguda de instituições de peso no campo do patrimônio cultural, a Fundação Nacional pró-Memória do MEC foi autorizada a absorver esses museus com seu acervo, instalações e pessoal. A Cinemateca, o Museu Lasar Segall e o Museu da Chácara do Céu (Rio de Janeiro), entre outros, beneficiaram-se dessa janela. E a Cinemateca finalmente conquistou uma modesta estabilidade, essencial nos trabalhos de preservação de longo prazo.

A ata de incorporação da Cinemateca ao governo estipulava salvaguardas, válidas até hoje: sua sede não poderia ser transferida de São Paulo, a instituição gozaria de autonomia política, assegurada pelo seu Conselho Consultivo, composto de representantes das três instâncias do poder público e de cineastas,
pesquisadores, professores, jornalistas, artistas, sem maioria dos agentes governamentais. Uma real parceria entre governo e sociedade em benefício de uma instituição pública.

No acordo então estabelecido, à União cabia prover o custeio (pessoal e manutenção) e ao privado e outras instâncias de governo a busca por investimentos. Esse entendimento possibilitou em 1989 a criação da Sala Cinemateca, com patrocínio do Banco Nacional, recebido por intermédio da SAC. Nesse cinema da rua Fradique Coutinho, foram exibidos ciclos como “Este mundo é um pandeiro”, dedicado às chanchadas carnavalescas, e mostras de grandes diretores como John Ford, Fritz Lang, Ozu, Mizoguchi, Max Ophuls e Tarkóvski.

Com a eleição de Collor em 1990, os órgãos federais do cinema como Embrafilme e Fundação do Cinema Brasileiro foram extintos. A Cinemateca só se salvou por estar vinculada ao IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Estivesse ligada a órgão de cinema teria sucumbido com ele.

A parceria com a SAC, reativada em 1989, foi crucial para a consolidação da Cinemateca. Atraindo personalidades eminentes da sociedade como Luiz Carlos Bresser Pereira, Cosette Alves e Roberto Teixeira da Costa, a SAC e a Cinemateca acabaram por adentrar no mundo da mídia, do poder político e econômico, franqueando-lhe apoios e investimentos da Petrobras e do BNDES necessários para levar avante o restauro das instalações do Matadouro Municipal de São Paulo, cedidas pelo prefeito Jânio Quadros para sede da Cinemateca.

A passagem do cinéfilo Bresser Pereira como presidente da SAC entre 1987 e 1992 e a vivência da parceria com a Cinemateca deu-lhe a experiência que serviu de inspiração para a criação das OS – Organizações Sociais, quando se tornou Ministro da Reforma do Estado, no governo FHC.

No governo Lula, a Cinemateca foi transferida do Patrimônio Histórico para a Secretaria do Audiovisual, e usada como instrumento de política cultural do governo. Para isso recebeu um considerável aporte (105 milhões em 5 anos) por meio da SAC. A Cinemateca com sua sede impressionante, recursos e proeminência política ganhou um destaque indesejado ao contrariar sua vocação natural de órgão de preservação.

Uma disputa política deflagrou suspeita de irregularidades e a Ministra da Cultura do governo Dilma, Marta Suplicy, decidiu em 2013 intervir na Cinemateca, demitindo o diretor Carlos Magalhães sem sequer ouvi-lo, não renovando o mandato dos conselheiros, reduzindo drasticamente o orçamento e o corpo funcional da Cinemateca, que principiou a definhar. A apuração das “irregularidades” não constatou desvio ou malversação de recursos públicos, apenas ausência de protocolos administrativos. Nada que justificasse a truculência da intervenção. A Cinemateca teve quebrada sua espinha, arranhada sua reputação. Já a SAC foi paralisada. 

Em consequência da redução de colaboradores, sobreveio em 2016 o quarto incêndio, que atingiu uma câmara de armazenamento de filmes inflamáveis na sede da Vila Clementino. Perderam-se mil rolos de filmes antigos, cuja totalidade não estava copiada. A necessária reforma dos depósitos de nitrato após incêndio já não contou com verba do ministério; foi feita com recursos de particulares. A indiferença de Brasília era ostensiva.

Durante 30 anos, entre 1984, data do ingresso dos técnicos no quadro do governo, e 2013, não houve concurso público para reposição do corpo funcional da Cinemateca. Desse modo, a força de trabalho teve de ser arregimentada de modo precário, via terceirização. Ela aconteceu com o chamamento de contratação de uma Organização Social. A escolhida foi a ACERP – Associação Roquete Pinto, herdeira da TVE do Rio de Janeiro. 

Como a ACERP é uma OS do Ministério da Educação, o contrato com a Cultura não pôde ser celebrado diretamente e pegou carona no contrato da TV Escola, cujo prazo de validade era dezembro de 2019.
Por esse motivo, a Cinemateca ficou sem cobertura a partir de janeiro de 2020. A ACERP manteve a Cinemateca com recursos próprios na expectativa de forçar o governo a reconhecer uma situação de fato, mas tal estratégia não vingou.

Instado pela Câmara dos Vereadores, pela Associação dos Moradores de Vila Mariana e a Associação Paulista de Cineastas, o Ministério Público acionou a União solicitando da Justiça Federal tutela de urgência; em outras palavras, reconhecimento da excepcionalidade da situação que exige medidas para evitar uma ameaça ao patrimônio público. O Ministério Público teve o cuidado de pedir também o restabelecimento das salvaguardas rompidas unilateralmente em 2013. Mas seu esforço foi em vão; a Justiça Federal manteve-se indiferente ao apelo e declarou-se satisfeita com as medidas tomadas pela Secretaria Especial da Cultura do governo federal.

O quinto incêndio aconteceu na semana passada. Ironicamente não recaiu sobre o depósito de nitrato como nas vezes anteriores, e sim no depósito de acervo em trânsito, que não continha nenhum material particularmente perigoso, apenas papeis e filmes de segurança, com risco equivalente ao de uma biblioteca.

Analisando as imagens do sinistro e o relato dos bombeiros fica-se com a impressão de que se os técnicos da Cinemateca lá estivessem eles teriam minimizado os danos como fizeram no incêndio de 2016, quando orientaram os bombeiros quanto à melhor estratégia de confinar as chamas e impedir que a água vertida pelas mangueiras destruísse o que o fogo não atingiu.

Enquanto os técnicos não reassumirem suas funções, a ameaça permanece na sede principal, onde estão guardados os tesouros da Cinemateca e o valioso patrimônio audiovisual brasileiro.

Tenho sido assediado para dar sucessivas entrevistas e esclarecimentos em função do incêndio. Verifico no semblante do interlocutor uma surpresa, que logo deriva em incredulidade e incompreensão.

Acabamos por juntos constatar que o caso é bem embrulhado.

O entrevistado, sob o peso da memória de três incêndios, começa a duvidar do próprio relato, que soa inverossímil. Como o poeta sem téssera, ele “apela em vão para Kafka”.