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Um museu do olhar

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Por Carlos Diegues, cineasta e ex conselheiro da Cinemateca. Texto publicado no jornal O Globo, 25.05.2020

Cinemateca é uma ideia de Henri Langlois. Em 1936, com 22 anos de idade, ele criou, associado ao futuro cineasta Georges Franju, a Cinemateca Francesa, com um arquivo de dez filmes. Um arquivo hoje transformado na maior coleção de filmes do mundo, com mais de cem mil títulos ali depositados para preservação e difusão. São inúmeras as anedotas sobre Langlois fugindo da polícia nazista de ocupação, durante a Segunda Guerra, para salvar rolos de filmes escondidos em seu carro. Em 1968, por causa de sua resistência à burocracia do governo francês, que agora subsidiava a Cinemateca, o ministro da Cultura, André Malraux, o demitiu. O que acabou inaugurando os famosos chienlits da juventude daqueles anos. À frente dessas batalhas cívicas de rua, estava a Nouvelle Vague, comandada por Godard, Truffaut e Malle.

A Cinemateca Francesa se tornou um templo de ensinamento e celebração da arte cinematográfica. Em 1970, conheci Elia Kazan, em Paris. Convidado à pré-estreia europeia de seu filme mais recente, “The arrangement”, realizada na Cinemateca, vi o grande mestre de tantas obras-primas, com lágrimas nos olhos, dizer, para uma plateia jovem e lotada, que aquele era o ápice de sua carreira. Kazan festejava sua chegada pessoal à Cinemateca Francesa.

Aqui, a Cinemateca Brasileira, em São Paulo, projeto, nos anos 1940, de uma geração de pensadores, jornalistas e cinéfilos, como Paulo Emílio Sales Gomes (falecido em 1977, mesmo ano que Henri Langlois), Almeida Salles, Antonio Candido, Rudá de Andrade e outros, se tornou uma referência internacional, apesar dos parcos recursos que os governos brasileiros lhe reservavam. Tendo começado como cineclube, a instituição só vai se assumir como Cinemateca em 1956, com as bênçãos de Paris.

Nunca conseguimos explicar direito às autoridades da nação o sentido de uma cinemateca, um arquivo vivo do olhar do país, baseado numa cultura e numa economia. É nela que vamos encontrar o registro concreto da sociedade à nossa volta, seu povo e seus costumes, através de documentos ou de dramaturgia. É nela que vamos encontrar também os modos de olhar o que vemos, nos ajudando a entender o que se passava, no momento do registro. É desse olhar que vamos tirar o que somos e o que queremos ser, num processo de adesão ou rejeição em que ninguém é capaz de interferir.

O cinema já tem 125 anos de existência, já podemos julgar com mais precisão o que nos serve. Mas nossas autoridades nunca refletiram sobre o assunto. Ao ouvir falar em Cinemateca, pensam logo em projeção de filmes velhos, conhecidos e mais ou menos respeitados, nas noites de folga. Apesar desse eventual desinteresse do poder público, o olhar que queremos guardar é caro para ser restaurado e arquivado, sem perspectiva de trocas comerciais e, portanto, produção de lucros. Por isso, não pode ser bancado senão por esse mesmo poder público, em nome do interesse geral.

A Cinemateca Brasileira sempre foi maltratada pelos governos. Mas foi com Dilma Rousseff, em 2013, que sua diretoria foi destituída, funcionários foram demitidos, seu Conselho esvaziado e os subsídios cortados. A Cinemateca quase fechou. Mas, sanados os males, por que não se retomou a administração dela com pessoas do gosto e confiança do governo? Mais tarde, em 2018, o novo ministro da Cultura estabeleceu que a gestão seria transferida para Organizações Sociais, como deveria estar acontecendo até agora. Mas se a OS, no final do quinto mês do ano, ainda não recebeu tostão do orçamento anual, como administrá-la? O descaso só vai ser corrigido com a volta da Cinemateca ao pleno seio do Estado, o único que pode se interessar pelos olhares do tempo que lhe cabe guardar.

Então, como fazer? Sabemos que esse governo não se interessa por nosso cinema e não temos a quem pedir socorro. De um lado, carreatas e buzinaços cruéis na porta de hospitais, para dizer, aos que estão morrendo lá dentro, que aqui fora está tudo legal, venha pra cá dar risada conosco. Do outro, um líder popular comete o ato falho de saudar o vírus genocida, porque ele prova a razão de seu programa político. E por aí vai. Deve haver alguma estratégia salvadora capaz de neutralizar vírus tão diabólico. Uma nação de porretas não pode ser vencida por um filhinho-da-mãe que mede 120 bilionésimos de um metro.

De todo modo, não foi o Brasil que deu errado. Foram os que se tornaram responsáveis por ele, aventureiros e incompetentes. A Cinemateca Brasileira, bem socorrida, poderá contar essa história através de documentários ou filmes de ficção, através de seu museu do olhar brasileiro.