Por Roberto Gervitz, cineasta e conselheiro da SAC. Texto publicado no jornal O Globo, 06.08.2021
Na quinta-feira, dia 29 de julho, o fogo atingiu um depósito da Cinemateca Brasileira, em São Paulo. A violência das chamas que tomaram uma instituição responsável por nossa memória audiovisual impactou a sociedade brasileira. Imediatamente nos veio à lembrança o trágico incêndio do Museu Nacional, em 2018.
Desapareceram nas cinzas quatro toneladas de documentação de toda a história das instituições responsáveis pela política cinematográfica brasileira de 1966 até o surgimento da Ancine nos anos 90 — décadas apagadas, mais uma prova de nosso desprezo pelo passado. Não seria tal desprezo um retrato de nossa baixíssima autoestima, do nosso “complexo de vira-latas”? Essa ausência de intimidade com o passado que nos constituiu como povo seria um prato feito para uma análise psicanalítica de massas, se é que isso é possível.
Mas associado a essa característica parece haver um projeto regressivo de rebaixamento do Brasil frente a outras nações. Uma escolha pelo papel de pária, sempre decepcionante frente às nossas dimensões continentais, e, mais do que isso, frente às grandiosas oportunidades desperdiçadas para que nos afirmássemos como um país de contribuições singulares e valiosas para outros povos do planeta. Como disse João Moreira Salles em recente entrevista, poderíamos, neste momento, nos identificar como uma potência ambiental, liderando as nações por meio de uma ação sustentável diante de nossa natureza com seus infinitos biomas, alguns únicos em nosso planeta. Mas, ao contrário, estamos próximos de destruir irrecuperavelmente a Amazônia e os povos guardiões dessa riqueza necessária, mas não mercantilizável, transformando-a em um deserto, espelho fiel dos que estão hoje no poder político e econômico do país.
Será a predação a nossa real vocação? Extrair colonialmente tudo o que é possível até que não sobrem vestígios? Há mais de um ano a comunidade cinematográfica e as organizações da sociedade civil se mobilizam e alertam para evitar o que assistimos na quinta-feira passada. Mas a reverberação dessas ações não chegou aos pés do frenesi que a replicação das imagens da destruição provocou na mídia e nas redes sociais. Esse fenômeno que se repete me faz perguntar se não somos fascinados pela nossa própria destruição. Parece haver um certo regozijo mórbido e catártico, um prazer em reafirmar o nosso fracasso e a nossa incompetência como povo.
Mas ainda há o prenúncio de um novo sinistro. Na sexta-feira dia 30/7, foi divulgado o Edital de Chamamento Público para a escolha da nova OS que deverá gerir a Cinemateca pelos próximos cinco anos. Vale comentar que a opção pelo sistema de gestão por OS suscita críticas e dúvidas importantes entre os gestores culturais.
O Edital de Chamamento destina a quantia de R$ 10 milhões anuais para a Cinemateca e exige que a OS selecionada levante mais 40% dos recursos aportados, perfazendo R$ 4 milhões. No entanto, no próprio estudo de publicização elaborado pelo governo federal, está demonstrado que os custos anuais estimados para a Cinemateca, a partir de 2022, serão de R$ 22,500 milhões! Ou seja, mesmo que a OS obtenha a quantia exigida pelo edital, a soma de R$ 14 milhões inviabiliza uma gestão que signifique avanços necessários e resgate o período áureo de 2003-2013, quando a Cinemateca foi colocada entre os cinco principais centros de restauro do mundo.
Vale notar que, entre os critérios de seleção, o peso dado para eficiência de gestão e a capacidade técnica para gerir uma cinemateca, numa escala de 0 a 5, é 2. Já o valor dado à capacidade de captação de recursos tem a nota máxima, 5. Tais valorações são incompatíveis com um contrato de gestão, pois o objetivo de contratação de uma OS é o de aumentar a eficiência e não repassar custos.
Destaca-se ainda o projeto de cobrar dos produtores cinematográficos pelo depósito de seus filmes na Cinemateca no intuito de arrecadar recursos para a manutenção da instituição. Além do fato de que a soma desses recursos será irrisória frente às necessidades já apontadas, é importante deixar claro que a Cinemateca não é uma prestadora de serviços de preservação audiovisual, não é um negócio; ela é uma instituição pública governamental responsável pela conservação do patrimônio audiovisual brasileiro. Ao guardar, conservar e restaurar parte significativa desse patrimônio, a Cinemateca cumpre sua finalidade mais importante ainda associada à divulgação de seu acervo e do cinema.
Os princípios que norteiam esse edital expressam cabalmente o desprezo com a nossa memória e o consequente descompromisso com a constante renovação de imagens que iluminem nossas identidades almejadas ou não. Delas, conhecemos apenas lampejos. É como se condenássemos o nosso inconsciente à escuridão da ignorância sem querermos saber quem somos.